Bolsonaro é uma figura que representa a extrema-direita. Embora a imprensa nacional hoje tenha um certo pudor em atribuir a ele essa posição dentro do espectro político.
O atual presidente da república é habituado a fazer piada com a morte de pessoas. Além de ter debochado dos mortos vitimados pelo Covid-19, recentemente tem feito piada com o "trocadilho" feito em sua campanha com o nome do grupo supremascista Ku Klux Klan. Eu, enquanto linguista, não poderia deixar de suscitar aqui algumas reflexões sobre o episódio.
Contexto
No último dia 7 de setembro, Bolsonaro usou a máquina pública para fazer campanha eleitoral em meio aos eventos oficiais que celebravam os 200 anos de independência do Brasil. O presidente subiu na tribuna ao lado da sua esposa, a quem chamou de "princesa" e do empresário Luciano Hang, que a menos de 15 dias havia se tornado alvo de investigação da Polícia Federal por defender, junto a outros empresários, um golpe de estado caso o candidato Lula seja eleito nessas eleições.
A tribuna de honra no evento foi palco de uma tentativa de Bolsonaro em ser simpático, beijando de maneira constrangedora a esposa na boca e puxando o coro de "imbrochável" na tentativa de afirmar sua virilidade. O evento institucional foi filmado e as imagens - que estavam compondo a campanha a reeleição - foram proibidas de serem usadas dias depois pelo TSE.
Em meio a repercussão do evento desastroso, o candidato Lula, em comício, afirmou que a ocasião parecia "uma reunião da Ku Klux Klan", por não haver pessoas negras, trabalhadores e outros representantes das minorias.
Após, os eleitores de Bolsonaro acharam, portanto, viável mudar o termo, usando nas redes sociais a expressão "cuscuz clan" que se assemelha fonologicamente à expressão original e a maquia com o argumento de que é uma "piada". Após ser publicado no Twitter oficial do atual presidente e se popularizar entre os apoiadores, a equipe da campanha passou a utilizar o termo para divulgar os eventos em que o candidato estaria.
Ku Klux Klan
A Ku Klux Klan (KKK) é uma organização terrorista fundada no final do século XIX nos Estados Unidos. O grupo supremascista promovia - e ainda promove - atos contra negros. As vítimas eram espancadas e enforcadas em vias públicas e os integrantes do grupo usavam capuzes e tinham a cruz como símbolo. O grupo é classificado como de extrema-direita.
A expressão significa algo próximo à "círculo familiar" ou "círculo do clã". As duas primeiras palavras derivam foneticamente da expressão grega "kýklos", que significa "círculo", ou "ciclo". Já "klan" vem de grupo familiar.
Surpresa alguma
Temos um candidato de extrema-direita, que ri da morte de milhares de pessoas, que é racista, homofóbico e sexista se apropriando de um termo que faz referência a um grupo terrorista de extrema-direita. Surpresa alguma.
Usar a expressão "cuscuz clan" para maquiar a referência e fingir que se trata de uma piada é um disparate. É, mais uma vez, fingir gracinha com um tema sério. Tentar minimizar o que significa a Ku Klux Klan é criminoso.
Para tentar subverter a situação, Bolsonaro acusou Lula de ofender as pessoas que estavam nos atos, acusando-as de serem do grupo racista. Os simpatizantes do atual presidente passaram então a usar com ainda mais engajamento a expressão "cuscuz clan", sem qualquer reflexão crítica sobre o significado disso. O que a campanha de Bolsonaro chama de "trocadilho" eu classifico como estratégia.
Ao tentar fazer uma reorganização de um referente associado a algo absolutamente negativo e passar a usar então a expressão "cuscuz clan", Bolsonaro tenta situar sob uma nova perspectiva o termo, sem perder o significado negativo e real da expressão original.
Não é coincidência que Klan signifique grupo familiar e tenha sido marcado apenas pela troca do k pelo c na adaptação do presidente. A família (dele) é algo que ele preza muito, como sabemos. Mas o mais instigante é ver um alimento tão tradicional para o povo nordestino ter sido apropriado por alguém que afirma não existir fome no Brasil.
O cuscuz tem a sua origem nos povos africanos e é uma comida basilar para o nordestino. Um alimento de fácil preparo, fonte de carboidrato e fibras, que é versátil, sacia, é barato e se tornou símbolo de resistência. Porém agora, foi apropriado por um grupo político xenófobo e elitista, mas que precisa amparar seu pseudonacionalismo na cultura popular.
Quem passa fome no Brasil? Subverter o nome do alimento que mata a fome de milhares de brasileiros para se referir a um grupo racista não é por acaso. Tudo está relacionado e precisamos estar atentas e atentos a cada detalhe. Eles usam o discurso de que é apenas "uma piada", fazendo com que esse episódio seja visto como algo leve, engraçado, conquistando a adesão das pessoas. Sobretudo de pessoas pobres, negras, mas que não possuem ainda condições de entender o complexidade da situação.
Bolsonaro se elegeu falando discursos preconceituosos ao bel-prazer e chamando-os de piadas. O que eles chamam de "brincadeira" vem de um lugar de ódio às minorias, misoginia, aporofobia, assassinato de pessoas negras. Para alguns pode parecer uma relação óbvia, mas nós precisamos levar isso para as pessoas que ainda não enxergam essas camadas quando o presidente reclama que estamos problematizando o que ele chama propositalmente de "trocadilho". A imagem do milho com o capuz do grupo racista reforça que não é apenas uma "piada", mas sim uma tentativa de popularizar a ideia sob uma imagem que apele a algo mais leve para que seja amenizado e amplamente divulgado.
Se Lula, em sua fala, afirmou que, para ser de fato uma reunião da KKK, faltavam apenas os capuzes no evento de comemoração ao bicentenário da independência, agora, ao colocar capuz na imagem do milho para dar uma conotação divertida a esta atrocidade, Bolsonaro mais uma vez ri de nós e destila ainda mais preconceito, dando mais um aval para que seus seguidores façam de nós alvos.
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