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A mulher tradicional


Eu sempre enfatizo que quando damos um passo, sobretudo em movimentos sociais coletivos, o patriarcado dá dez. Sempre ficamos para trás. Isso se dá pela estrutura e raízes bem fincadas do patriarcado.

Recentemente tenho visto nas redes sociais um culto sutil a algumas características e abordagens que reforçam o lugar de submissão e silenciamento da mulher. Vídeos que exaltam a beleza feminina e a elegância sob um viés de recatamento na indumentária, conteúdos sobre uma fictícia "energia feminina" e como se reconectar com ela para ser mais valorizada pelos homens, além do direcionamento sutil de conteúdos sobre culinária e limpeza da casa como algo realizado apenas por mulheres e com um caráter de enobrecimento e realização pessoal através dessas atividades. 

Claramente tudo isso faz parte de uma movimentação maior. E um dos tentáculos dessa "desevolução" é um movimento que tem ganhado força através das redes sociais: o TradWife. 

O movimento "TradWife" (ou "Esposa Tradicional", em português) é uma subcultura que se concentra em promover a ideia de que as mulheres devem seguir um estilo de vida tradicional e "feminino". Isso inclui coisas como ser dona de casa, cuidar dos filhos, cozinhar e limpar a casa, e se submeter ao marido como líder da família. Os adeptos do movimento acreditam que esses papéis de gênero tradicionais são o caminho para uma vida feliz e satisfatória. No entanto, o movimento claramente perpetua estereótipos de gênero e limita as opções das mulheres.

O movimento Tradwife surgiu nos últimos anos como uma reação ao feminismo e à cultura moderna que, segundo seus defensores, promove a divisão de gêneros e a falta de valorização das tarefas domésticas e da maternidade. Os adeptos do movimento Tradwife buscam resgatar o papel tradicional da mulher na sociedade, voltando às raízes da família em que a esposa cuidava do lar e do marido, enquanto ele provia o sustento financeiro. Essa ideologia é baseada na crença de que a felicidade e o sucesso da mulher estão diretamente ligados ao seu dever de cuidar da casa e dos filhos, e que isso deve ser visto como uma escolha livre e consciente. Seus defensores afirmam que o movimento é uma resposta a uma sociedade cada vez mais voltada para o individualismo e o feminismo. A premissa central do movimento é a valorização da vida doméstica, com as mulheres assumindo o papel de donas de casa e cuidadoras dos filhos e maridos, dedicando-se à criação de um lar harmonioso, confortável e acolhedor.

No entanto, essa visão ultrapassada e retrógrada não representa a realidade da maioria das mulheres, que buscam igualdade de direitos e oportunidades. Além disso, a imposição de um modelo único de vida para as mulheres pode ser prejudicial para aquelas que não se encaixam nessa expectativa. 

Muitas mulheres que aderem ao movimento afirmam que se sentem mais realizadas ao cuidar de seus lares, filhos e maridos do que se estivessem trabalhando fora de casa. Elas acreditam que a vida doméstica é um trabalho tão importante quanto qualquer outro e que, ao dedicar-se a ele, estão contribuindo para a construção de uma sociedade mais saudável e equilibrada. De fato, a valorização do trabalho doméstico é crucial; sem o trabalho doméstico gratuito o capitalismo não consegue movimentar suas engrenagens. Porém, a adesão dessas mulheres enfatiza a necessidade urgente de debatermos a sobrecarga de trabalho que o capitalismo impõe sobre a mulher na sociedade contemporânea. Embora nosso papel social tenha mudado paulatinamente e à duras penas nas últimas décadas, atribuições impostas a nós ao longo dos séculos não foram redistribuídas. Hoje somamos ao trabalho doméstico e cuidado com os filhos a nossa carreira profissional. E ainda vivemos em uma sociedade que questiona a mulher e a invalida quando essa não quer ter filhos ou casar. Precisamos distribuir o papel do cuidado com a casa e filhos para os companheiros, cônjuges, genitores ou indivíduos com quem dividimos o lar, não refutar a efetividade do feminismo e dar passos para trás. 

Em um momento em que as mulheres lutam por mais direitos, igualdade de oportunidades e contra a discriminação de gênero, o movimento Tradwife é retrógrado. Afinal, ao valorizar apenas o papel da mulher como dona de casa, o movimento endossa a ideia de que as mulheres devem se limitar a esse papel, em vez de buscar a igualdade em todos os aspectos da vida.

Elenquei algumas das características mais problemáticas do movimento: 

1. Estereótipos de gênero: O movimento "TradWife" promove uma visão estereotipada e limitada dos papéis de gênero, reforçando a ideia de que as mulheres devem ser submissas e se concentrar em tarefas domésticas, enquanto os homens devem ser os provedores e líderes da família. Essa visão estereotipada limita as opções das mulheres e impede que elas alcancem seu pleno potencial.

2. Falta de escolha: há a promoção da ideia de que seguir um estilo de vida tradicional é a única maneira correta e satisfatória de ser uma mulher. Isso deixa as mulheres com o sentimento de que não têm escolha ou liberdade para seguir seus próprios caminhos na vida.

3. Desigualdade de gênero: O movimento "TradWife" promove a ideia de que os homens devem ser os líderes e provedores da família, enquanto as mulheres devem se concentrar em tarefas domésticas. Isso reforça as desigualdades de gênero, onde as mulheres são vistas como inferiores e subordinadas aos homens.

4. Limitação do potencial das mulheres: O movimento promove a ideia de que as mulheres devem se concentrar em tarefas domésticas e cuidar dos filhos, impedindo-as de explorar outras opções de carreira e interesses que possam levar a uma vida mais satisfatória e realizada.

5. Falta de inclusão: O movimento é frequentemente criticado por ser exclusivo e limitante, promovendo uma visão estereotipada e restrita dos papéis de gênero que não reflete a diversidade das experiências das mulheres.


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